
Integridade
No começo de tudo, existia o vazio, onde não há tempo, matéria ou ideia. Então, de uma obscura vontade transcendente, surgiu um único ser. Este que um dia seria chamado de Celestial. Sua carne era luz e ideia, e sua existência era nada além de introspecção. Por éons meditou solitariamente na vasta escuridão; pensava e repensava o nada, tirava compreensão do incompreensível; suas ideias cíclicas e autofágicas, erguendo-se acima de sua mente como uma coroa que ecoa pelo cosmo. Porém, sua mente continha pensamentos inquietos, indomáveis, pensamentos de indignação com a estagnada realidade que existia. Foi então que se viu na obrigação de quebrar as leis de sua existência, cessando seu ponderar eterno e abrindo seus olhos para o nada. Ele se vê insatisfeito com sua vasta solidão, e logo busca a resolução de seu problema. Seus pensamentos tomam forma de espírito, iluminando o infinito com a vontade de alterá-lo. Com o poder que sabia ter, uniu os pensamentos de sua imortal essência à realidade vazia que o cercava. Seus pensamentos se alastravam pelo vazio como fogo, e, repentinamente, este se preencheu.
Fez-se luz. Com luz, fez-se rocha. Com rocha, fez-se os astros. Com os astros, fez-se sistemas e galáxias. E então, brotado de seus pensamentos, uma realidade florescia como um jardim. E a beleza desse jardim descomunal se mostrava em seu movimento infinito, no aplicar de suas leis próprias, no piscar de suas luzes independentes. Como uma paisagem, ele contemplou sua obra por éons incontáveis, satisfeito com seu trabalho. Mas algo faltava.
A luz, a rocha, os astros, os sistemas e as galáxias, eram coisas que reagiam uns aos outros em grande beleza cinética. Mas eram coisas mortas, um caos sem alma. Então, em sua mente fértil ele criou, aos poucos e com muito esforço, uma criatura. Algo que, assim como ele, era feita de luz e ideia, compreende e entende, age e reage, questiona e cria.
Por tempo imensurável ele trabalhou em tal criatura, procurando criar uma obra prima. Ao terminar, ele observa sua criação: Havia criado um ser de pura luz, cuja beleza era estonteante até para sua compreensão eterna. Quando os pensamentos de sua obra fluíram de sua mente recém nascida, tingindo o cosmo com as belas cores de suas noções e emoções, a realidade se tornou algo infinitamente mais precioso.
Movido pela obra mais bela criada por suas mãos, uma lágrima de amor vital desce por seus olhos, atingindo a terra de um dos seus planetas, fazendo brotar vidas sem qualquer planejamento superior, nascidas de pura paixão. Surgiam na forma de vidas desformes , como chamaríamos de árvores e arbustos, ou como vidas imperfeitas e de pouca consciência, como chamaríamos de animais. E por serem proles acidentais de seu amor, por pouco não chegou a amá-los ainda mais do que as criaturas nascidas de seu esboço.
E assim o que era morto e sem alma, logo transbordou com pensamentos, ideias, paixões, preenchendo todo o firmamento com a admirável beleza de muitas mentes espontâneas. E quanto mais as pequenas criaturas se multiplicavam, maior era a beleza que espalhavam pela eternidade. O Celestial se viu na obrigação de espalhar aquela beleza para todo astro de todo sistema de toda galáxia, até que todo o universo se visse lotado com a beleza inerente à vida. E então, eventualmente e com muito esmero, conseguiu preencher cada rocha morta com nova vida. Ele notou sua criação, como um jardineiro de vastos acres que alcansavam além do horizonte, onde cada lote continham em si uma grande estrutura de flores diferentes, mas de igual beleza magnânima.
Aquilo era bom.
Ele amava sua criação, e em torno sua criação o amava. E o amava tanto que buscou imitá-lo em suas mais puras qualidades. Buscaram conhecer mais sobre a existência, então manipulá-la, então criar mais por dentro desta. Em uma compreensão conjunta, as criaturas evoluíram em união, desbravaram o universo, tornaram-se poderosos seres em seu próprio direito, compartilhando da sabedoria de seus irmãos que cruzava os cosmos para unir-se à sua, formando um turbilhão de consciência que não formava uma sinfonia perfeita. Infindas civilizações trabalhando juntas para criar com suas próprias mãos o ápice da existência. Um ápice que logo foi atingido, e não havia nada na natureza deste universo que não estava sob o domínio do Celestial e seus muitos filhos.
A existência se tornara completa.
Porém, havia um único problema a sobrar, um criado pelo fato de que tudo havia sido dominado: a realidade se esgotou de desafios. Os primeiros filhos do celeste, os seres de luz de sua perfeita semelhança, propuseram uma solução para tal problema. Conhecendo sobre o véu da realidade, e de que existiam mundos além deste, foram tomados pela poderosa vontade de levar sua luz infinita para outros domínios, com sorte trazer outras criaturas abaixo da graça infinita do criador, cedida a eles como estandarte. Seus irmãos concordaram com este plano, e logo eles utilizaram de seu vasto aprendizado para romper o tecido da realidade, e então tornar sua visão para a entrada criada, com o fim de ver o que há além.
Além do portal criado, escuridão era a única coisa a se enxergar, uma escuridão sólida e intrespassável. Algo esperado pelo criador, mas que invocava neste um sentimento inédito: receio.
Os pensamentos dos filhos celestes adentraram a escuridão em sinergia, jogando para o outro lado suas intenções e seus significados.
De dentro do portal escuro, surgiu como resposta um pensamento vago e fraco, cujo significado se viu indecifrável pela maioria dos seres, seguido por uma ideia áspera, forte, terrível, inédita para aqueles que viviam em uma existência completa. Aquela perfeita existência foi encontrada por algo, algo que não gostou do que viu. A escuridão infinita que existia no além encontrou-os por conta da entrada criada por criaturas ingênuas, avançando por todos os seus flancos, consumindo tudo o que tocava. Criações que marcaram a realidade com uma existência de éons incontáveis reduzidas a nada em instantes. O grande jardim estava em chamas, aniquilado por algo cuja voracidade era inédita e inigualável. Ouviu-se sentimentos escuros e terríveis se juntar à sinfonia de significado. O Celeste via seus astros sumirem, suas criaturas engolidas pelo abismo que se aproximava, devorando luz e beleza, destruindo o turbilhão de consciências em uma cacofonia de horror. Uma cacofonia que se intensificou, mas aos poucos cedeu espaço para uma quietude fúnebre. Um evento que futuramente foi chamado de “O Grande Silêncio”.
O criador sentiu o segundo sentimento inédito: desespero.
Era rápida a forma como todo seu trabalho era aniquilado, a realidade se calando mais e mais, os pensamentos se tornando menores e mais baixos, silêncio tomando conta do cosmos. Então a raça de luz, seus primogênitos, as criaturas mais belas a agraciarem o universo, foram consumidas em um único instante, seus clamores terríveis diante da impotência penetrando o criador em sua alma.
Então, ele sentiu o último sentimento inédito: fúria.
Em sua cólera, fez fogo infinito emergir de sua forma, buscou vingança a todo custo. Mas a vingança o eludia, incapaz que era diante de tão grande mal. Seu ímpeto logo se curvou em uma direção mais adequada. Subitamente, usou toda a capacidade transcendente que portava para afastar a escuridão. Tomou em suas mãos a própria existência, arrancando o único pedaço restante do cosmos com violência extrema, e jogando-a para longe do alcance do nefasto abismo. Nisso, utilizou tamanho poder que partiu a própria realidade em dois pedaços, eternamente dividindo o Éter, plano onde velejam as essências e os pensamentos, do Concreto, plano onde habitam as criaturas e objetos. Sua existência, ligada aos dois pedaços partidos, se desfez no processo. Seu corpo e alma, sendo uma única coisa, esmigalhou-se em incontáveis fragmentos. Porém, a escuridão estava longe agora, incapaz de consumir os seus. Uma pequena parcela da realidade, separada de sua totalidade, velejando o nada como uma folha ao vento, escondida dos olhos que buscavam destruir-lhe.
Em seus últimos instantes, havia se virado para enxergar o quanto de seu jardim cósmico permaneceu ileso.
Enxergou uma raça de criaturas esguias, rodeada por um mundo cheio de água, populado de criaturas não cognoscientes que poderiam dominar, vivendo em terras de belíssimo verde, olhando de volta a ele acima de suas poderosas cidadelas acima das nuvens, com a mais pura melancolia molhando suas faces. Estes que um dia chamaríamos de ‘Líbiros’.
Então ele chorou uma última vez, tanto em tristeza quanto em alívio.
Suas lágrimas então popularam os céus com uma luz poderosa, iluminando o firmamento escuro, tomando a forma dos astros, lembrando a seus últimos filhos como eram os belos céus de seu mundo antigo, confortando-os em sua ausência.